Quem viu Beatriz Souza no topo do pódio olímpico em Paris ou recorda bem da torcida em cada uma das três vezes que Mayra Aguiar conquistou o Campeonato Mundial ou vibrou com a raça que Ketleyn Quadros Maria Portela deixavam no tatame talvez nem imagine, mas o esporte feminino, incluindo o judô, já foi um ambiente muito mais hostil para as meninas que queriam praticar. Em especial décadas atrás, quando mulheres sequer eram autorizadas a competir.
Mas são desses momentos que surgem ícones, e a Federação Gaúcha de Judô, após um intenso trabalho interno, conseguiu jogar luz a uma verdadeira pioneira no estado, Léa Linhares. A ex-atleta, passados mais de 50 anos, recebeu enfim o reconhecimento por sua dedicação e esforço à modalidade, ao ganhar o diploma de faixa preta homologado pela Confederação Brasileira de Judô.
A oficialização e o reconhecimento de uma conquista que Léa alcançou há mais de cinco décadas ocorreu durante a Copa Cidade de Campo Bom, há duas semanas. Na ocasião, nomes de peso do judô feminino do estado posaram para uma foto com a primeira mulher do Rio Grande do Sul a ter alcançado a faixa preta. “Foi um momento muito importante e simbólico. Desfecho de um trabalho que mobilizou a federação”, destacou o presidente da FGJ, Luiz Bayard.
“Era só eu”

Antes de contar o trabalho da FGJ, porém, é necessário voltar à zona norte de Porto Alegre da década de 1960. Ainda antes da fundação da própria Federação Gaúcha de Judô. Os primeiros passos da arte marcial vinda do Japão eram coordenados pela Federação de Pugilismo. E aconteciam sob a égide do artigo de um lei hoje impensável, que restringia a sua participação em algumas modalidades que envolviam contato, como as lutas.
“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”, ecoava o artigo 54 do Decreto-Lei 3.199, de 1941.
A medida reduzia a participação feminina, inclusive para jovens e potenciais atletas, como a então pequena Léa. Ainda assim, ela conseguiu ingressar em aulas de judô, em 1965. Sem lá muito incentivo, contudo. “O espaço para mulheres era pouco, muito pouco. Não tinha divulgação. Quando entrei, havia 18 meninas, mas depois de dois meses, ficou só eu”, relembra. “Não tinha divulgação, era proibido esportes de contato para mulheres. Mas eu entrei.”
O incentivo para o ingresso na modalidade veio a partir do irmão dela, Pedro, que começou o judô na escola: “Naquela época, não havia projetos sociais”, observa Léa. Seguiram lá até 1966, quando os dois passaram a ter aulas no Gondoleiros, e por lá ficaram.
A rotina, porém, era um tanto diferente para Léa, que apesar dos dissabores, prosseguiu. “Houve problemas com rejeição”, admite. “Eu não tinha adversárias. Não podia lutar”, contou. Ainda assim, como diz ela, foi seguindo a carruagem. “Não se falava em mulher faixa preta. Como uma mulher iria ganhar uma faixa preta? Mas eu fui seguindo em frente”, afirma. “Eu queria praticar judô.”
Na base da insistência, ela prestou o exame para a faixa preta em 1968. Resultado: aprovada! Em 1969 foi reconhecida faixa preta. Porém, naquele período, a Federação Gaúcha de Judô estava prestes a ser fundada, desvinculando-se da entidade que trata do pugilismo. Léa viu-se, então, diante de outro adversário: a burocracia. “A papelada se perdeu”, explica.
A papelada em questão eram os registros de exames e provas superadas por Léa até a faixa preta. A ausência da documentação impediu o reconhecimento da sua faixa preta por parte da então Confederação Brasileira de Desportos. Ainda nos anos iniciais da modalidade, o caminho para Léa, então, foi tornar-se árbitra – em um novo rompimento de barreiras. “Eu fui a primeira árbitra do judô gaúcho”, exalta ela, que na sequência voltou à federação de pugilismo como dirigente, enquanto a vida seguiu para outras atividades.
Da batalha ao reconhecimento
A reaproximação de Léa com o judô se deu a partir da década passada, quando voltou a frequentar competições de judô. Em 2015, o professor Marçal Neto entrou com um pedido de refiliação dela à FGJ como faixa preta, o que foi aceito, mas não homologado pela CBJ. Há cerca de dois anos, ainda no início desta gestão, a federação pôs como uma de suas metas a regularização da graduação de Léa junto à CBJ. Por cerca de dois anos, houve pesquisa de documentação, comprovando os passos seguidos por Léa.

Quando enfim reconheceram a graduação, Léa admitiu a surpresa. “Eu nem esperava.” Superados os trâmites, restou escolher a data e local da entrega do esperado diploma, o que foi viabilizado para 12 de outubro, na Copa Cidade de Campo Bom. Na presença de diversas atletas femininas, que seguiram os passos de Léa e foram muito mais além, inclusive chegando às Olimpíadas, como Mayra Aguiar e Maria Portela, Léa recebeu seu merecido diploma.
“Na hora bateu uma emoção”, recordou. “E até disse para as gurias que estavam ali que continuassem, porque é difícil. Mas a mulher tem que batalhar por aquilo que ela quer, ser focada”, revelou Léa, a primeira gaúcha faixa preta de judô na história. Agora, devidamente reconhecida.





