O princípio do Jita kyoei e a história de uma faixa preta

Mais que uma arte marcial ou um mero esporte, o judô – que, em japonês quer dizer “caminho suave” – é também um conjunto de princípios e filosofias. Um deles é o “Jita kyoei”, uma expressão que pode ser compreendida como o princípio da prosperidade e benefícios mútuos, que ensina que o ser humano deve ser solidário e buscar o bem estar social e coletivo.

Mesmo que não se note, os princípios do judô se fazem presentes no cotidiano de dojôs, academias e clubes mundo afora. Basta olhar com um pouco mais de atenção que, em meio a tanto esforço e suor, notam-se ali as filosofias propagadas a partir dos ensinamentos do mestre Jigoro Kano.

Recentemente, Porto Alegre teve uma expressão mais significativa dessas amostras. Mais precisamente do Jita kyoei. Essa expressão ocorreu em forma de uma promoção da Federação Gaúcha de Judô, que concedeu uma faixa preta honorífica ao atleta Paulo Fernandes, da AABB.

Prosperidade e bem estar

Fernandes, hoje com 68 anos de idade, agora se junta a centenas de outros faixas pretas no Rio Grande do Sul. A sua, porém, chegou a sua cintura não só após mais de duas décadas com a graduação marrom, mas também após a superação de um Acidente Vascular Cerebral e uma luxação na clavícula. Obstáculos enormes, porém que não apagaram o amor dele pelo esporte e tampouco o fizeram desistir de seu sonho. A prosperidade, em suma.

O vínculo de Fernandes com o judô começou há muito tempo. Mesmo antes do início da história de seu sensei, o professor Cid Júnior, com a modalidade. Paulo Fernandes teve suas primeiras aulas de judô no começo dos anos 1970. Desde a década de 1990, ostentava a faixa marrom. No entanto, a rotina de trabalho de engenheiro requisitado a estar em diversos lugares do mundo não lhe cedia tempo para realizar o curso para a faixa preta.

A sonhada faixa preta, então, foi ficando para depois e, pouco a pouco, mais distante. Apesar da resistência do sensei: “Eu sempre cobrei pra ele fazer o exame”, revela Cid, que faz questão de elogiar o aluno. “Tenho o costume de tirar fotos todos os dias depois dos treinos. Se tem 100 pessoas no tatame, ele está lá. Se tem três, também”, conta. “Ele não falta treino.”

Porém foi justo num dos treinamentos na AABB, em 14 de abril de 2022, que um incidente que mudou a vida de Fernandes aconteceu. Durante uma das atividades, ele relatou que se sentia estranho. Não era um simples mal estar, e sim um Acidente Vascular Cerebral.

Paulo sobreviveu, só que com sequelas: “O AVC não atingiu a coordenação motora, mas a fala e a memória”, relata o professor Cid, que acreditava ser ali o ponto final da trajetória do aluno na modalidade. Ledo engano. Cerca de sete meses depois, Paulo Fernandes enfrentou a vontade da própria família e voltou a vestir quimono para treinar, promovendo a alegria de seus colegas – tal como sugere o bem estar de todos do Jita kyoei.

Superação e exemplo

Apesar de se preservar nos randoris, outro acidente estava em seu destino, cerca de dois meses depois do seu retorno. Em uma determinada disputa, uma queda causou uma luxação na clavícula. “Lembro que falei envergonhado com a família do Paulo sobre a lesão, pois nós estávamos cuidando dele. E, de novo, achei que ele não voltaria a treinar”, diz Cid.

A paixão pelo judô, entretanto, falou mais alto outra vez. Três meses depois, lá estava Paulo Fernandes – então sobrevivente de um AVC e recuperado de uma grave lesão – novamente no tatame. 

À essa altura, os próprios familiares já consentiram com a vontade do atleta. “A família já sabia como ele amava o seu ‘judozinho’, mas com o tempo fomos entendendo o quanto esse esporte era importante na vida dele”, revela a filha, Sabrina Zanini. “Ele sempre foi um cara muito responsável no trabalho, um profissional muito dedicado. Começou com um cargo baixo na Gerdau e terminou como diretor técnico responsável por muitas siderúrgicas. Em meio a tanta responsabilidade, há muito tempo, o meu pai inseriu o judô na vida dele, talvez como uma válvula de escape para o estresse”, declara. “Acho que nem ele sabia que iria amar tanto esse esporte.” 

“Tivemos a certeza de que ele só não teve maiores sequelas em função do esporte, se hoje ele ainda tem independência física para ir e vir de qualquer lugar, é graças ao judô”, conclui a filha, testemunha desta paixão. 

Neste novo retorno, algo ainda não havia mudado: Paulo seguia com a faixa marrom.

A graduação, na avaliação do professor Cid, já não condizia com o histórico do seu atleta. Como em razão das condições, ele já não conseguiria fazer o curso de promoção, o sensei procurou a Federação Gaúcha de Judô para encontrar uma solução. Junto com o presidente Luiz Bayard, foi articulada uma promoção honorífica a Paulo Fernandes, que, num primeiro momento, acreditava que seria submetido a um teste para shodan – o que não foi necessário, em razão de seu quadro clínico pós-AVC e em reconhecimento ao seu empenho ao longo desses anos.

“É realmente uma trajetória de muita dedicação, esforço e mesmo amor ao judô. Então articulamos essa promoção, que, na prática, é como uma homenagem a essas cinco décadas de convívio com a nossa modalidade”, comenta Bayard. “O judô, afinal, não é apenas competição. Ele também educa, socializa e transforma as pessoas”, destaca, exaltando o exemplo de Paulo.

“Faz parte das prerrogativas da Federação realizar esse tipo de reconhecimento, pois é também uma das formas de desenvolvimento do judô”, destaca Bayard. “Atletas como o Paulo são exemplos vivos de como o judô pode ser praticado por todos. Ainda que apareça mais, a competição é apenas uma das vertentes do judô. A prática do judô ao longo da vida é algo que traz benefícios físicos e emocionais a seus praticantes”, comenta. 

Reconhecimento e emoção

Ao lado de outros ex-dirigentes, colegas e nomes históricos do judô gaúcho – como Iara Mari, a primeira mulher a participar de Mundial, e Lea Linhares, a primeira mulher faixa preta do RS – além da presença de quatro kodanshas gaúchos, Paulo Fernandes foi graduado faixa preta no último dia 20 de fevereiro. Quem lhe entregou a nova graduação foi a sua neta Marina, ela uma ex-judoca da AABB, numa cerimônia marcada pelo simbolismo e emoção.

“Recebemos a notícia da graduação com muita alegria. Nos sentimos muito lisonjeados do pai ser tão querido no esporte que ele escolheu para a vida dele. O pai ficou numa felicidade inacreditável. Ele ama demais esse esporte. É o compromisso dele. A família sabe que nos dias que ele tem judô, não podemos marcar nada, porque ele não pode faltar”, relembra Sabrina.

“A entrega da faixa e os discursos das pessoas que lá estavam foi muito emocionante. Ele ficou e está realizado com a faixa preta dele”, acrescentou Sabrina. “É um cara que merece”, suspira Cid, também ele um veterano e nome histórico do judô gaúcho, mas que vê em seu atleta um brilho diferente. 

Para o professor, dentre todos os faixas pretas que ajudou a formar, Paulo entrou em uma categoria distinta: “O Paulo, para mim, transcende. É um cara que está treinando e motiva os outros. Ele faz tudo, do aquecimento aos uchi-komis. Cansa, volta, brinca e ri. É um cara que agrega e motiva o grupo”, declara o sensei, que não escondeu sua emoção na cerimônia. “Sou, na verdade, grato a ele por tê-lo como aluno.”

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